Estamos diante de um CANI - (Conflito Armado Não-Internacional) no Rio de Janeiro? --- confira este Artigo de Opinião --- CANI - (Conflito Armado Não-Internacional) CARIOCA? - por Frederico Veras
CANI
CARIOCA?
Frederico
Veras
A
escolha do tema
A Associação dos
Juízes da Justiça Militar da União (AJUFEM) tem como um de seus objetivos a
divulgação de temas de interesse para os que atuam na seara jurídico-castrense.
Em razão disso, seus associados decidiram fazer esta publicação, contando com o
formidável apoio do Dr. Claudio Amim Miguel, escolhido como coordenador da obra
e interlocutor com a editora, o qual fixou como data limite para entrega dos
arquivos para todos associados o dia 15 de maio de 2023.
Conforme
este prazo ia se aproximando, fiquei quase angustiado, pensando sobre o que
poderia escrever. Foi quando tive a sorte de almoçar com a Dra. Najla Nassif
Palma, referência para nós no DIH e DICA, na oportunidade do excelente Simpósio sobre Lei Penal e Processo Penal em
Conflitos Armados: peculiaridade da Era da Informação (oferecido pela
Escola Nacional de Aperfeiçoamento de Magistrados da Justiça Militar da União –
ENAJUM, entre 11 e 13 de abril deste ano). Conversamos durante o almoço sobre o caso
do Rio, se seria uma hipótese de CANI ou uma situação de grave
comprometimento da segurança pública. A Dra. Najla argumentou que como moradora
do Rio, teria uma visão mais real dos fatos, bem assim que a taxa de homicídios
naquela capital seria de apenas mil e quinhentas pessoas por ano, concluindo
que o caso é de segurança pública. Cumpre registrar que a Dra. Najla estuda
estes e outros assuntos correlatos há mais de vinte anos.
Na verdade, o número de mortes é
ainda mais baixo. Dados levantados pelo Monitor do Homicídio (com base em
informações do FBSP, IPEA e IBGE) dão conta de cerca de mil e trezentos
homicídios em 2021[1].
Certamente estes homicídios não estão todos ligados aos grupos armados que
comandam o narcotráfico na Cidade Maravilhosa. A
conversa com a Dra. Najla trouxe dois pontos importantes sobre a discussão da
matéria: a) a necessidade de parâmetros objetivos (v.g., número de mortes
diretamente relacionadas com o narcotráfico); e b) como a percepção pessoal
pode influenciar na análise dos dados disponíveis.
Sob
meu ponto-de-vista, em uma região onde assaltos a padaria e em pontos de ônibus
são feitos com o uso de fuzis, em munícipio para o qual foram criados
aplicativos para monitorar em tempo real tiroteios constantes (v.g., OTT 360 – Onde tem tiroteio), com uma população que após anos de violência
diária acostumou-se ao absurdo de achar normal fatos como este, “parte da
vida”, o entendimento quanto da existência de um conflito armado poderá perder
um pouco de sua nitidez.
Pois
bem, desta troca de ideias com a Dra. Najla surgiu meu tema: haveria no Rio de
Janeiro um CANI? Quais parâmetros poderiam servir de baliza para uma conclusão?
Um
leitor apressado poderá imaginar: constatou-se o CANI, que providências seriam
tomadas? Como o estado agiria? Qual a repercussão para vida das pessoas que
residem no Rio? O Brasil terá interesse em declarar que existe uma situação de
um CANI? O amigo Dr. Carlos Henrique Reiniger questionará: como isso afetará os
jogos do Flamengo? [2]
Longe
de dar uma resposta concreta ao tema, este curto artigo almeja apenas indicar
alguns dos critérios para uma pesquisa mais séria sobre o tema, que depende de
dados concretos, alguns destes ainda indisponíveis, como o número efetivo de
vítimas diárias das atividades de narcotraficantes nas comunidades
cariocas. Antecipe-se que, na sua
conclusão, o artigo aventará a possibilidade de sem declarar-se um CANI, a
exemplo do ocorrido em outros países (Colômbia e México, dentre outros),
adotar-se uma legislação que dê maior elasticidade às operações policiais e uma
participação mais intensa das Forças Armadas no reforço da segurança pública.
As
bases de um conflito armado não internacional de baixa intensidade no Rio de
Janeiro
Em
uma consulta rápida ao site da Cruz Vermelha[3],
acha-se uma definição consolidada e simples do que seja um CANI, entendido como
conflito não internacional “entre forças governamentais e grupos armados não
governamentais, ou somente entre estes grupos”, tendo por substrato legal o
artigo 3º comum às Convenções de Genebra de 1949 e o artigo 1º do Protocolo
Adicional II.
Ainda
no site citado, verifica-se que:
“Para
que se possam distinguir os conflitos armados, no sentido do artigo 3º comum,
das formas menos graves de violência, como tensões e distúrbios internos,
tumultos ou atos de banditismo, a situação deverá atingir certo limiar no que
diz respeito aos confrontos. É geralmente aceito que o limite inferior
apresentado no artigo 1(2) do PAII, que exclui tensões e distúrbios internos da
definição de CANI, também se aplica ao artigo 3º comum.
Normalmente são utilizados dois
critérios nesse sentido:
–
Em primeiro lugar, as hostilidades devem
atingir um nível mínimo de intensidade. Pode ser o caso, por exemplo, quando as
hostilidades são de natureza coletiva ou quando o governo é obrigado a empregar
força militar contra os insurgentes, ao invés de apenas as forças policiais.11
–
Em
segundo lugar, os grupos não governamentais envolvidos no conflito devem ser
considerados “partes do conflito”, o que significa que eles possuem forças
armadas organizadas. Isso quer dizer que estas forças devem estar sob uma
estrutura de comando e ter a capacidade de manter operações militares.
Uma definição mais
restritiva de CANI foi adotada no âmbito específico do Protocolo Adicional II.
Este instrumento aplica-se a conflitos armados “que ocorram no território de
uma Alta Parte Contratante, entre suas forças armadas e forças armadas dissidentes
ou outros grupos armados organizados que, sob a direção de um comando
responsável, exerçam sobre uma parte deste território um controle tal que lhes
permite realizar operações militares contínuas e concertadas e aplicar o
presente Protocolo.
Esta definição é mais estreita que a noção de
CANI pelo artigo 3º comum em dois aspectos. Em primeiro lugar, introduz o
requisito de controle territorial, ao dispor que as partes não governamentais
devem exercer este controle “tal que lhes permite realizar operações militares
contínuas e concertadas e aplicar o presente Protocolo”. Em segundo lugar, o
Protocolo Adicional II aplica-se somente, de maneira expressa, a conflitos
armados entre as forças armados do Estado e forças armadas dissidentes ou
outros grupos armados organizados. De modo contrário ao artigo 3º comum, o
Protocolo não se aplica a conflitos armados que ocorram somente entre grupos
armados não estatais.”
No
Estatuto de Roma, internalizado pelo Decreto n° 4.388/02, o art. 8°, que trata
dos crimes de guerra, letra “f”,
tem-se também uma definição de conflitos armados não internacionais: “A alínea e) do
parágrafo 2° do presente artigo aplicar-se-á aos conflitos armados que não
tenham caráter internacional e, por conseguinte, não se aplicará a situações de
distúrbio e de tensão internas, tais como motins, atos de violência esporádicos
ou isolados ou outros de caráter semelhante; aplicar-se-á, ainda, a conflitos
armados que tenham lugar no território de um Estado, quando exista um conflito
armado prolongado entre as autoridades governamentais e grupos armados
organizados ou entre estes grupos.”[4]
Somadas
todas estas diferentes definições, pode-se arriscar que as características de
um conflito armado internacional tem uma certa elasticidade: 1) ocorre no
território de um único país (ainda que, por exemplo, armas possam vir do
exterior); 2) prolongam-se no tempo; 3) exigem a participação das Forças
Armadas, ainda que a disputa ocorra entre grupos não estatais; 4) deverá haver
um controle territorial; 5) deverá existir organização no grupo armado, ou
seja, bandos armados eventualmente reunidos não caracterizam um CANI; 6) a
intensidade do conflito, situação que reflete na condição do item 3.
Advogo
que um fator objetivo deve também ser considerado para verificar-se a
existência do CANI, qual seja, o número de integrantes dos grupos armados. Por
vezes, são agentes que não participam diretamente das hostilidades, mas que dão
suporte, prestam serviços, fazem a colheita de informações de inteligência,
geram recursos etc. Como referência, as Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (FARC), reconhecida pela Organização dos Estados Americanos (OEA) como
uma entidade terrorista, dispunham de
quinze mil guerrilheiros[5].
No Brasil, o CV, segundo pesquisa divulgada em 2021 pelo site IG, teria
cerca de trinta mil integrantes[6].
Some-se a isso as demais facções (ADA e Terceiro Comando Puro) e os milicianos,
para constatar-se ser evidente que quarenta e cinco mil[7]
integrantes da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro são absolutamente
insuficientes para lidar com o problema. Note-se que a PMRJ que é responsável
também por cuidar de diversas outras tarefas além do crime organizado, como
brigas de vizinho e delitos de trânsito[8].
Os pouco mais de nove mil homens da Polícia Civil, que é uma polícia de
investigação, a quem não cabe o policiamento ostensivo e repressivo, pouco
podem ajudar na contenção das atividades criminosas advindas do
narcotraficantes, dentre outros motivos: a) não tem acesso a território
inteiros onde os crimes são praticados; b) dificilmente tem testemunhas
dispostas a contribuir para as apurações; e c) são absolutamente insuficientes
e despreparadas para lidar com delitos cotidianamente praticados por dezenas de
milhares de pessoas que se dedicam profissionalmente ao crime.
Quanto
a questão territorial, a dominação dos grupos de narcotraficantes é evidente e
tem sofrido uma gradual ampliação, apesar da tentativa de implantação de UPAs e
da intervenção federal em 2018[9].
Populações inteiras, moradores de determinados territórios se submetem ao poder
de narcotraficantes, estes instituem normas, inclusive escritas decomo a
comunidade deve proceder e o desrespeito a estas normas gera sanções que beiram
à barbárie, negam a norma estatal, mas são dotadas de eficiência, celeridade na
aplicação e uma capacidade de repressão incontestáveis.
É
também evidente que a situação no Rio é prolongada, que sua intensidade
pode variar, com momentos de conflito aberto, noticiários de confrontos e
outros de menor intensidade. Porém, mesmo quando não existem conflitos mais
violentos, em silêncio o crime organizado prossegue com ações típicas de uma
preparação bélica. O CV, por exemplo, não compra fuzis, granadas e
metralhadoras .50? Não alicia jovens menores de 15 anos a “pegarem em armas”
(v. Art. 8ª, “e”, vii, do Estatuto de Roma)?
A todo tempo não há um aprestamento para atos próprios de guerra, como a
tomada de território, a morte de inimigos, a garantia de recursos para a
manutenção do aparato militar (homens e meios) de que se vale?
Ao
longo de décadas não há sempre um pedido de socorro às Forças Armadas para que
auxiliem no combate aos grupos armados que dominam e aterrorizam áreas inteiras
da cidade do Rio que não são minimamente protegidas por forças de segurança
pública? Só para falarmos nos últimos anos, tivemos a GLO entre 2017 e 2018,
culminando na intervenção federal em fevereiro de 2018. Sobre isso, veja-se o
artigo As operações de garantira da lei e da ordem (GLO) em perspectiva
comparada com o uso da força nas operações de paz – reflexos do emprego da
força no MINUSTAH para a atuação do Exército Brasileiro em GLO
pós-Haiti[10],
que
descreve claramente um conflito armado e não a simples contenção de um grave
comprometimento da segurança pública:
“Durante o período
em que o Estado do Rio de Janeiro foi submetido a intervenção federal na área
de segurança pública, o uso da força letal por parte dos militares das FA
esteve em evidência. Os dados consolidados até outubro de 2018 mostraram que
foram realizadas inúmeras ações, com destaque para as operações de remoções de
obstáculos, para liberar ruas bloqueadas por criminosos, que alcançaram um
total de 803 remoções de obstáculos, sendo 197 só na região de São Gonçalo. Os
disparos de arma de fogo contra a tropa registrados mostram 155 (cento e
cinquenta e cinco) ocorrências, com destaque para as regiões de Praça Seca, São
Gonçalo e Cidade de Deus (BRASIL, 2018b).
O período com a
maior incidência de óbitos de civis, em confronto com as tropas de segurança,
foram os meses de maio, junho e agosto de 2018, com nove, oito e doze casos,
respectivamente. Somando um total de 46 mortes de civis e quatro militares,
registradas em situações de confronto (BRASIL, 2018b). O que demonstra um dano
colateral relativamente baixo se comparado ao tempo de exposição da tropa e as
ameaças enfrentadas.”
“803
remoções de obstáculos”? 155 disparos de arma de fogo contra a tropa? Na
prática isso quer dizer que havia centenas de barreiras postas em vias públicas
evidenciando um domínio de territórios de tamanho considerável. Diferente de
disparos de traficantes contra policiais, algo bastante grave, os grupos
armados e envolvidos não se intimidaram diante das Forças Armadas, pelo
contrário, tiveram ações próprias de um conflito bélico.
Claramente
os grupos armados possuem chefes (conhecidos pela mídia e pelo público), que
existe uma hierarquia entre os que participam das organizações criminosas que
desafiam o Estado, que há um planejamento e método em suas ações criminosas e
que ordens circulam diariamente entre a cúpula do crime e seus “soldados”.
Em
resumo, aparentemente, tem-se mais que um grave declínio na segurança pública e
várias características de um CANI podem ser percebidas.
A opinião de alguns doutrinadores
Pela
ligeireza deste texto, registraremos a opinião de alguns poucos autores sobre a
situação do Rio de Janeiro, suficientes para dar conta da inexistência de um
consenso sobre a matéria.
Mariana
Campos, magistrada da Justiça Militar da União, atuando no Rio de Janeiro, em
artigo intitulado O Grave Comprometimento
da Ordem Pública no Estado do Rio de Janeiro pode Configurar um Conflito Armado
não Internacional?[11],
concluiu que os “conflitos existentes não levaram à manifestação formal do
Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, não há nível de
organização das facções criminosas característico dos grupos armados como
estrutura de comando bem definida (ao revés, há disputa entre os criminosos –
traficantes e milicianos - por território e poder), e inexiste controle
territorial por parte desses grupos ou capacidade de manter operações militares
contínuas e organizadas”. Brevemente, deve-se considerar que a inexistências de
“manifestação” da ONU sobre o assunto não é propriamente uma indicação da
inexistência do CANI, pois é evidente que uma eventual resolução da ONU sempre:
a) será posterior a efetiva existências de um CANI; b) dependerá de uma série de
circunstâncias políticas, algumas capazes de obstar uma ação concreta das
Nações Unidas, ainda que evidenciado o CANI. Além disso, a “disputa de
traficantes e milicianos por território e poder” indica que estes estão no
domínio de territórios e que disputam poder, que poder? Poder político? Poder
de influenciar o Estado? Poder sobre as populações que moram nos territórios
dominados? A resposta a estes questionamentos é comprovadamente sim.
Desenvolvendo
um pouco mais a questão da “disputa entre traficantes e milicianos”,
registre-se a afirmação de Hudson Corrêa e Diana Brito:
“No final de 2011,
um relatório reservado da Ministério Público anunciava o impensável: o
casamento entre duas facções outrora inimigas de sangue. A milícia e o tráfico
fecharam um acordo com as bênçãos de seus respectivos chefes, os irmãos Minho e
Lino e Fernandinho Beira-Mar.”[12]
Note-se
que a milícia evoluiu uma
narcomilícia, que CV e PCC passaram a agir juntos contra o Estado Brasileiro, atuando
como “pequenas repúblicas criminosas”, diversas organizações se unem, não
apenas fugindo da aplicação da lei, mas atacando diretamente as bases das
instituições nacionais.
De
leitura indispensável para o assunto em estudo, o livro Gangues Territoriais e Direito Internacional dos Conflitos Armados,
ao tratar do cenário do Rio de Janeiro registra:
“Embora aqui se defenda a aplicação
do DICA a algumas situações de confronto com grupos criminosos, e entre eles
próprios, é de indagar se essas situações seriam um conflito armado não
internacional. Não, segundo a maioria dos autores. No entanto até pelas
citações de artigos que trouxemos à baila, todos são unânimes em afirmar que,
em face de confrontos envolvendo criminosos organizados, isso seria possível,
até mesmo diante da elasticidade do art. 3° comum. Em que pese esta
constatação, sempre a solução do problema à luz do DICA é postergada para o
futuro, e raramente alguém aparece para defender o tratamento correto do
problema e reconhecer que a repressão ao crime nesses casos superou o limite
dos distúrbios internos. Ainda que a gravidade das refregas com as forças
policiais possa, até mesmo, ser maior em algumas hi´póteses de confronto que
nos conflitos armados, a doutrina reluta em aplicar as normas que regem os
conflitos armados para essas situações. Este posicionamento implicar fechar os
olhos para a realidade, pois todos os componentes do conceito de conflito
armado não internacional estão presentes, com um acréscimo importante: o domínio territorial nítido das facções,
que se manifesta no encravamento de suas atividades. É bem verdade que as
forças policiais ainda não foram subjugadas, embora sofram muitas baixas em
seus quadros, além da influência nefasta da corrupção desencadeada pelo
dinheiro fácil do crime organizado. Mas não é necessário que se chegue a uma
hipótese de failed state para só
então defender a aplicação do DICA.”[13]
Embora
seu foco não seja propriamente jurídico, deve-se destacar o trabalho de
VISACRO, na obra Guerra Irregular[14],
ao apresentar uma abordagem contundente da questão brasileira, notadamente
quanto ao Rio de Janeiro, apresentando um conjunto de dados e estudos muitos
consistentes. Diz VISACRO que:
Portanto, tentar
reduzir um problema tão complexo a uma mera questão de segurança é um grave
equívoco ou uma conveniente forma de omissão. Restabelecer a segurança e a
presença do Estado, garantindo a lei, a ordem e o pleno funcionamento das
instituições políticas e sociais, em áreas urbanas superpovoadas e carentes,
que se encontram sob o domínio de grupos armados organizados, não merece uma
abordagem tão limitada, nem pode aguardar passivamente pela alteração de
profundas distorções socioeconômicas, que demandariam um tempo excessivo. Em
oposição ao que muitos críticos advogam, operações militares contra segmentos
armados do crime organizado, particularmente o narcotráfico, não constituem um
desvio da atividade fim das Forças Armadas. Ao contrário, são em sua essência a
própria atividade-fim, pois guerrilha urbana e narcoterrorismo tronaram-se
parte da realidade nacional. [15](pp.
327/328)
É nítido o embate entre opiniões
diversas sobre qual a situação do Rio de Janeiro, havendo um ponto comum
entre os estudiosos da questão: não é uma situação de normalidade e solução
será encontrada apenas com um apoio do governo federal.
Concluindo
Este
breve artigo cuidou apenas de indicar alguns dos parâmetros que poderiam demonstrar a existência de um
CANI no Rio de Janeiro, sem um aprofundamento maior da questão, mas servindo
para deixar claro que esta é uma realidade possível.
Caso
as respostas a uma pesquisa mais completa e arguta a pergunta deste artigo seja
positiva, o questionamento subsequente será: quais as consequências disso? E se
a resposta for negativa: como resolver um grave comprometimento à segurança
pública que perdura por décadas?
Como
magistrado da Justiça Militar da União, minha preocupação mais imediata está
relacionada ao uso das Forças Armadas no “combate ao crime”, como “reforço”
necessário e temporário às forças de segurança pública do Rio de Janeiro. Ou
seja, tropas federais irão para uma zona
de guerra (ou no mínimo para cooperar com a “paz social” atingida por
organizações criminosas de monta, dotadas de armamentos de guerra), mas o
tratamento jurídico será o de tempo de
paz[16].
Em um
segundo momento e ainda dentro deste contexto de atuação das Forças Armadas,
preocupa-me o eventual despreparo de parte dos militares que podem ser chamados
a participar de operações no Rio de Janeiro, veja-se por exemplo o corrido no
incidente que culminou com a morte do músico Evaldo Costa, cujo carro foi
alvejado com aproximadamente 62 tiros, das centenas disparados[17].
Como
brasileiro e operador do Direito, queria não só constatar o problema, mas
também dar algum tipo de sugestão para que este seja resolvido, além de
simplesmente lamentar a deplorável situação em que chegamos no Rio de Janeiro.
O
reconhecimento de um conflito armado internacional de baixa intensidade tem
amplas repercussões, por exemplo: influi em resultados eleitorais, impacta em
decisões de investimentos estrangeiros, afasta turistas com repercussões
econômicas sensíveis, produz um aumento no número de mortes etc.
Fugindo
das habituais considerações sobre a necessidade do estado se fazer presentes em
áreas carentes (caso o crime organizado permita), do controle da entrada de
armamentos, de um maior investimento estatal na segurança pública, gostaria de
sugerir uma única ideia: a necessidade de uma legislação específica, de
natureza temporal e aplicável em espaço geográfico delimitado.
É
preciso oferecer a quem combate grupos armados e bem equipados (meios materiais
e humanos, destes últimos, com integrantes oriundos de forças de segurança
pública e das Forças Armadas) um suporte jurídico diverso daquele que é dado ao
policial militar para combater crimes isolados, delitos
praticados por agentes cuja periculosidade não é multiplicada por toda uma
estrutura criminosa corruptora e capitalizada. Ao mesmo tempo, é preciso dar aos
que forem presos trocando tiros com policiais e militares das Forças Armadas
convocados para contenção de grupos armados beligerantes, tratamento diversos
em termos penais, processuais e de execução penal.
[1]Considerado o estado do Rio de Janeiro
foram 3.052 vítimas em 2022, segundo o próprio governo do Rio de Janeiro,
cabendo registrar a queda significativa na prática deste crime: “O estado do
Rio de Janeiro encerrou o ano de 2022 com expressivas reduções nos crimes
contra a vida. Em 12 meses, os homicídios dolosos (intencionais) registraram
queda de 6%, o que representa menos 201 vítimas em comparação ao mesmo período
de 2021. O latrocínio (roubo seguido de morte) apresentou diminuição de 43% e a
letalidade violenta (roubo seguido de morte, homicídio doloso, morte por
intervenção de agente do estado e lesão corporal seguida de morte), de 6%.
Estes foram os menores valores para o acumulado do ano nos três indicadores dos
últimos 31 anos, quando se iniciou a série histórica do ISP. As mortes por
intervenção de agente do estado também declinaram 2% no acumulado.” Isso
coincide com um aumento significativo das mortes “por intervenção de agente do
estado”. O governo do Rio também informou que foram aprendidos 457 fuzis no ano de 2022. Informações disponíveis em https://www.rj.gov.br/noticias/estado-do-rio-encerra-2022-com-o-menor-numero-de-crimes-contra-a-vida-em-31-anos8185
[2]O assunto do CANI é sério e a pergunta
hipotética ao amigo poderá ser pensada em termos bem sóbrios, por exemplo, a
reação popular aos eventuais cancelamentos de jogos e as perdas financeiras
decorrentes destes. Estes poderiam ser fatores reais para que a reação pública
fosse desfavorável a um eventual reconhecimento de um CANI no Rio de Janeiro.
[3]
V. https://www.icrc.org/pt/doc/assets/files/other/rev-definicao-de-conflitos-armados.pdf
[4] Sobre assunto, a juiz federal da
Justiça Militar, Dra. Flávia Ximenes, registra que no “exemplo brarileiro de
violência armada prolongada decorrente de operações beligerantes de grupos
ligados ao narcotráfico..., não é raro que os agentes não estatais oponentes à
ordem social constitucional instituída se valham do recrutamento de crianças e
adolescentes, bastando terem condições físicas de manusear o armamento de alto
potencial lesivo” (in O Emprego das
Forças Armadas em situações de Conflitos Internos Graves: Uma análise das
Regras de Engajamento com os Direitos Fundamentais – São Paulo: Editora
Dialética, 2022.
[5]in VERGUEIRO, Luiz Fabrício Thaumaturgo. Terrorismo e Crime Organizado. São
Paulo: Quartier Latin, 2009, p.30.
[6]v. https://ultimosegundo.ig.com.br/policia/2021-10-08/onde-estao-e-quantos-membros-tem-as-5-maiores-faccoes-criminosas-do-pais.html.ampstories, ao tempo da divulgação da pesquisa, o
PCC já contaria com 112 mil integrantes, mas estudos mais recentes indicam 130
mil como sendo o número atual.
[7]O número exato em 2020 era 44.336,
segundo dado da Agência Brasil, disponível em
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-07/brasil-tinha-544-mil-policiais-militares-civis-e-bombeiros-em-2020
[8]Neste ponto, registre-se que além da PM,
a Guarda Municipal do Rio de Janeiro, com pouco mais de cinco mil integrantes
também contribuem no controle da criminalidade, agora sob a ameaça de não
poderem portar armas de fogo (v. https://www.conjur.com.br/2023-abr-12/municipio-vetar-uso-armas-fogo-guardas-municipais).
[9] Na mesma fonte da nota 5: “Quadrilhas
armadas de traficantes e milicianos expandiram em 131% as áreas sob o seu
controle na Região Metropolitana do Rio nos últimos 15 anos. Entre 2006 e 2008,
8,7% da área urbana habitada estava sob controle armado. O número pulou para
20% entre 2019 e 2021. O crescimento das milícias é o principal motivo dessa
expansão. Os dados fazem parte do novo Mapa dos Grupos Armados, feito em
parceria entre o Instituto Fogo Cruzado e o Grupo de Estudos de Novos
Ilegalismos (Geni) da UFF, divulgado nesta terça-feira.
Entre o primeiro triênio (2006-2008) e o
último (2019-2021) da série histórica, as milícias expandiram em 387% as áreas
sob o seu controle. Passaram de 52,6 para 256,2 quilômetros quadrados. Segundo
o novo mapa, atualmente 10% de toda a área territorial do Grande Rio está sob
domínio de bandos de milicianos. Hoje, representam o principal desafio à
segurança pública do Estado”. Também consignando que o “Comando Vermelho
ampliou suas áreas em 58,8%, de 130,2 para 206,8 quilômetros quadrados. O
Terceiro Comando Puro também aumentou a área sob o seu domínio em 110,8% (de
19,7 para 41,5 quilômetros quadrados). Segundo o trabalho, a expansão dos
grupos armados nos últimos anos é um fenômeno complexo, resultado de inúmeros
eventos e fatores locais e nacionais.”
[10]
Disponível em https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/6142/1/MO%206165%20-%20CRESCENCIO.pdf
[11]CAMPOS, Mariana Queiroz Aquino. O Grave Comprometimento da Ordem Pública no
Estado do Rio de Janeiro pode configurar um Conflito Aramado não Internacional,
in Perspectivas da Justiça Militar
Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 235.
[12]Trata-se do Relatório de Transmissão
Interna de Conhecimento de 06 de dezembro de 2011, ou seja, sete anos antes do
artigo de CAMPOS. V. CORRÊA, Udson e outro. Rio
Sem Lei, Como o Rio de Janeiro se transformou num estado sob o domínio de
organizações criminosas, da barbárie e da corrupção política. São Paulo:
Geração Editorial, 2018.
[13]PEREIRA, Carlos. Gangues Territoriais e Direito Internacional dos Conflitos Armados. Curitiba: Juruá,
2016. Pp. 201/202.
[14]VISACRO, Alessandro. Guerra Irregular, Terrorismo, Guerrilha e
movimentos de resistência ao longo da história. São Paulo: Contexto, 2009.
[15]VISACRO, Alessandro. Guerra irregular:
terrorismo, guerrilha e movimento de resistência ao longo da história. São
Paulo: Contexto, 2009, pp. 327/328. Este mesmo autor, ainda em 2009, fez uma
síntese interessante sobre o que é visto no Rio de Janeiro: “O crime
organizado, particularmente o narcotráfico nas regiões metropolitanas do Rio de
Janeiro e São Paulo, possui um segmento que atua ostensivamente nos morros,
favelas e periferias desassistidas, dispõe de grupos armados e exerce o domínio
efetivo de áreas específicas – verdadeiros “protetorados urbanos sem lei”,
segundo o coronel Joseph Nunes, do Exército dos Estados Unidos. Esses grupos
contam com apoio interno e externo para suporte logístico, como provisões de
armas e munições; atividades de inteligência; obtenção de receita, incluindo
práticas ilícitas ou não. Narcotraficantes também tem demonstrado capacidade
para conduzir ações típicas de guerra irregular dentro e fora de suas
respectivas áreas de influência, como incursões armadas, emboscadas, controle
da população, justiçamentos, demonstrações de força, atentados e distúrbios
civis”
[16]É certo que o legislador reconhece a
atuação em GLO como uma operação militar, fato que atrai a competência dos
crimes cometidos durante estas para a JMU (quer seja o autor militar ou civil),
sobre o assunto, vide o artigo A
Justiça Militar Brasileira e o Emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e
da Ordem (Oliveira, Artur e ... in Revista de Doutrina e Jurisprudência do
Superior Tribunal Militar, Número 1, Vol. 29, Julho/2019 e Dezembro/2019, pp.
45/50).
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